sábado, 12 de agosto de 2017

SOBRE (ALGUMAS) MÃES E O DIA DOS PAIS

Baby, de Gustav Klimt, 1917
Ontem fui buscar meus filhos na escola – sexta é o único dia da semana que consigo fazê-lo e faço questão desse momento. Coincidentemente foi o dia da comemoração do dia dos pais na escola.

Chego a escola e encontro muitos pais saindo da comemoração com seus filhos, cartões, cartazes, presentes e .... com  a mãe das crianças. Muitas mães, mesmo, saindo com os pais. 

Um dos pais me cumprimenta, aponta para a esposa e comenta comigo, brincando,  “essas mães querem estar em todas”. Como diz o ditado, é brincando que se fala a verdade...

Uma mãe passa e pergunta porque eu não fui na comemoração, explico que estava trabalhando – não é bem isso mas não vou polemizar com aquela simpática mãe tão contentinha que filou a festa do dia dos pais. Trata-se principalmente de respeitar um momento de paternidade, pois a data não era para celebrar a maternidade, mas enfim...

Enquanto aguardo comento com uma querida professora que estava ali na entrada da escola que estava impressionada com o número de mães no festejo da data da escola e a professora – que eu saiba tem pelo menos 15 anos de sala de aula - me responde “é engraçado que as mães querem todas vir na comemoração dos pais, mas pai nunca vejo em comemoração do dia das mães, só em casos excepcionais”.

A situação aparentemente parece bem bacana, louva a participação em um evento familiar e tem um lado positivo da integração familiar  mas, por outro lado, aponta também para um fato que observo como bastante nocivo em alguns casos: a onipresença da mãe na vida criança e sua invasão na relação da criança com o seu pai.

E traz à cena uma danosa modalidade de maternidade, digamos assim, de mães que frequentemente se consideram indispensáveis para seus filhos e desqualificam e invalidam qualquer outra relação que a criança estabeleça que não seja com elas inseridas. E assim essa mãe tem que participar de tudo na vida da criança, inclusive de espaços que não lhe são próprios e que ela invade.

Sabemos o quão fundamental, primordial, constitutiva e necessária é essa relação mãe/bebê, mas sabemos também que para essa criança se desenvolver de maneira saudável essa mãe deve “desgrudar” gradativamente do filho(a) para permitir que ele/ela possa desenvolver a sua própria subjetividade, desejos e etc. Com o tempo é necessário que a criança possa ter seu próprio espaço e experimentalmente ir criando seu próprio limite emocional e corporal que a constitui e a define.

Para isso é importante que o pai - ou um “terceiro”  da relação como diz a Psicanálise - possa entrar para “ separar” esse dupla fundida da relação mãe/bebê. Esse terceiro “liberta” a criança da presença maciça, unívoca e onipresente da figura materna devoradora. Esse terceiro permite que a/o bebê possa advir como um sujeito.

Mas para que um “terceiro” possa entrar nessa relação – e esse terceiro pode ser o pai, pode ser o nascimento de um outro filho, pode ser o trabalho, enfim, simbolicamente seria qualquer outro objeto de libido da mãe – essa mãe tem que permitir, essa mãe tem que se afastar e dar esse espaço para entrarem outros objetos possíveis com os quais a criança possa se relacionar e interagir.

Ou seja, essa separação tem que ser trabalhada e construída pela mãe para o bem da criança, mas muitas mães com sua onipotência, narcisismo e vaidade pensam que o ”bem” da criança está depositado todo em sua magnífica e exclusiva presença.

Essa construção da onipotência de determinadas mães é traçada a partir de sua história pessoal, de suas experiências na filiação de seus pais, pelos discursos do entorno, determinações da cultura e assim como pela escolha do parceiro nessa empreitada.  E ensejam a constante desqualificação da figura do pai, que nesse tipo de contexto acaba sendo conotado como aquele incapaz de cuidar, amar, zelar pelo seu filho/filha.

Vou dar um exemplo que escutei na clínica na semana passada, quando chega ao consultório uma gestante recomendada pela sua obstetra para um acompanhamento terapêutico, pois está tendo crises hipertensivas de fundo emocional. Com mais de 30 semanas de gestação adentra na sala uma primípara de quase 40 anos, segura, independente, bem sucedida que pontua que quer basicamente manejar o estresse do final da gravidez para manter baixa a pressão arterial.

Lá pelas tantas ela começa a descrever como será o pós parto, como ela terá que cuidar do filho, amamentar, colocar para arrotar, trocar fraldas, dar banho,  e etc acrescentando que como o pai do filho é muito desajeitado e bagunceiro ela  “sabe” que terá que fazer tudo sozinha pois “ele não vai saber nada”. Detalhe, essa mulher ama e admira o seu marido, vale destacar.

Trago esse caso para ilustrar como uma mulher que nunca foi mãe e nem conviveu com crianças já assume um lugar de domínio total sobre um contexto fantasístico no qual – antes mesmo do filho nascer – essa mãe já previamente desqualifica o pai de seu filho antes mesmo de conhecer seu desempenho na função paterna, já profetizando que ele será um pai incompetente que não será capaz de cuidar do filho do casal.   E o que se rascunha nesse exemplo é uma potencial mãe onipotente e narcísica que esvazia e deprecia qualquer outro que não seja ela mesma como suporte e amparo de seu bebê/criança. Esse “desenho final” do pai incompetente vai ser finalizado – ou não, espero eu – no decorrer da infância dessa criança.

Quero problematizar aqui o quanto vários discursos correntes que desqualificam e subestimam o papel dos pais na criação dos filhos são oriundos de falas maternas, falas que não são capazes de dar ao pai um lugar que ele possa ocupar e criar de acordo com sua maneira de ser e de existir, no seu formato e singularidade.

São mães que somente aceitam que os pais sejam subalternos e coadjuvantes em suas maternidades, hierarquizando a paternidade como menor, inferior. São pais que não podem vestir os filhos a partir de sua concepção de vestuário,  por exemplo, pois a mãe vai dizer que ele escolheu errado a roupa, o calçado, o penteado. Como esse pai vai poder aprender e criar sua própria forma de cuidar – como a mãe o fez – se não lhe é permitido o desempenho de suas funções?

Essas mães onipotentes e narcísicas são médicas, são  vendedoras de loja, são professoras.  E levam para o exercício de suas funções esse mesmo olhar desqualificante que perpetua a desqualificação e incapacidade dos homens serem pais.

Vou dar um exemplo disso.  Devido à clínica e à docência sempre trabalhei em horários que estendem a minha jornada de trabalho do horário convencional.  Durante os primeiros anos de vida de meus filhos lecionava Psicologia em turmas diurnas e noturnas de uma faculdade particular, sendo que a aula da noite ia ate 22h. Desta maneira era frequente que o meu marido e pai de meus filhos sempre chegasse antes de mim em casa, sendo assim o primeiro a encontrar as crianças e acolher suas necessidades.

Com raras exceções nesses primeiros anos era frequente ser o pai quem ia ao pronto socorro pediátrico e, de todas as vezes em que ele foi, não teve nenhuma ocasião na qual não lhe fosse perguntando ou que fosse perguntado a criança “onde está a sua mãe?”.  A mesma pergunta que pediatras e outras especialidades faziam ao pai de meus filhos em tratamento ambulatorial. Eu - quando levava nossos filhos - nunca ouvi de nenhum desses especialistas a pergunta “onde está o pai?” Acho que isso fala um pouco de nossa cultura, ao invés de ser louvado que um pai está cuidando de seus filhos, sempre existe um apontamento que quem “deveria” estar lá – a mãe - não está ...

Que fique claro que grande parte do espaço que a essa mãe narcísica e onipotente da qual estou falando ocupa é permitido/consentido/desejado por muitos pais. Muitos pais usufruem dessa onipotência materna para sequer se engajar minimamente em suas funções. Mas esse é um outro tema que em um outro momento conversaremos.

Nesse momento quero pensar como algumas mães – e muitas delas tenho certeza que não se dão conta do desserviço que fazem e pensam que estão fazendo o melhor para todos – acabam assumindo um lugar onipresente e aprisionam filhos/filhas em uma relação de poder e supremacia que aprisionam não somente os filhos, como os pais e a elas mesmas em situações de dependência e sofrimento que perduram a vida inteira.

Tendo como base o adágio romano “mater semper certa est, pater semper incertus est” outorgou-se um gigantesco poder para a mãe, para o bem e para o mal, – que acarretou ganhos e perdas para a mulher e para o homem nesse processo. Fazendo um trocadilho besta, depois do DNA a paternidade não é mais incerta e sabemos exatamente quem é a mãe e quem é o pai.

Novos tempos, novas ofertas tecnológicas e sociais, novas configurações familiares ensejam novas formas de ser homem e ser mulher, assim como a construção de papéis como ser pai e mãe vem sendo reconfigurados ao longo da história.

Que possamos construir maternidades e paternidades plurais, mais saudáveis, prazerosas e parceiras.   

quinta-feira, 31 de março de 2016

Sobre a contratransferência: o psicólogo e o manejo da política na clínica






Na Modernidade Tardia vivemos uma era de incertezas  e de desmoronamento dos valores da Modernidade. Do “sólido” ao “líquido”, como diria o sociólogo Zygmunt Bauman, vivemos a gradativa diluição de certezas, a falência de instituições e da corrosão de ideologias. Esse cenário provoca grande fragilidade no sujeito e suscita uma significativa sensação de desamparo.

Em meio a este panorama global,  a nível nacional vivemos um tenso e conturbado momento político com determinante impacto no cotidiano e na subjetividade hodiernas. Se, de um modo geral, o indivíduo se sente cada vez mais fragilizado e desamparado no mundo de hoje, em nosso país isso parece assumir contornos mais acentuados.

Em contextos como o que vivemos, de desamparo e insegurança, a defesa extrema e radical que alguns sujeitos adotam é a adesão  quase totalitária e fanática a determinados líderes e ideologias. Em meio a uma sensação de se estar a deriva, líderes radicais e “verdades” absolutas servem com uma espécie de bússola e arrebata seguidores desejosos de algo/alguém que lhes traga um rumo ou certeza, de um grande pai absoluto e protetor.

Se observamos esse fenômeno de maneira mundial, vemos esse quadro se acirrar violentamente aqui no Brasil. Adesões quase cegas a polarizações, radicalidades e extremismos na sustentação de argumentos diversos passam a ser uma defesa possível ante à insegurança. Que, repito, assume contornos assustadores no âmbito da política, com difusão a outros âmbitos de nossas vidas. Quanto mais “indefesos” mais os sujeitos radicalizam suas posições sem dialetizar, problematizar  ou questionar sua verdade absoluta e maciça que supostamente lhe ampara.

E como isso a afeta a clínica e o trabalho do psicólogo na condução de uma psicoterapia?  Em minha experiência, de maneira inédita, a crise politico, social, econômica e moral que estamos vivendo vem se tornando uma constante na fala da esmagadora maioria dos analisandos. A partir de diferentes perspectivas as questões políticas - e seus derivados - vem se tornando tema de análise e de muito sofrimento psíquico, seja com a queda de lideranças, seja com a perda da ilusão em diversos âmbitos, seja no desalento com crise que se antevê nos próximos anos/décadas.

Nesse contexto emergem várias questões para o clínico: como manejar esse material sem incorrer em debates que seriam mais adequados em ambientes sociais? Como evitar partidarismos ou defesas pessoais durante uma consulta? Como seguir o Código de Ética dos Psicólogos sem incorrer em subversões? Como extrair desse material – a exemplo de qualquer outro trazido na sessão – aquilo que diz respeito aos sentimentos e ao sofrimento do paciente? E, o mais importante talvez nessa reflexão: como não contratransferir negativamente na clínica?

O Código de Ética é claro quando explica no Art. 2º  que ao psicólogo é vedado: “b) Induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais”. Ou seja, cabe ao psicólogo cuidar da opacidade de sua própria subjetividade na condução de um tratamento psicoterápico no que concerne às suas opiniões pessoais sobre os mais diversos temas.

No método de psicoterapia preconizado pela Psicanálise, Freud concebe a clínica psicanalítica recomendando a neutralidade do psicanalista, postulando que este deveria mostrar o mínimo de si ao paciente, que deveria ser opaco, como um espelho que não mostra/reflete mais ao sujeito do que aquilo que foi por ele apresentado. Freud preocupava-se que a eficiência do manejo do processo analítico pudesse ser comprometida pela contratransferência, que faria obstáculo, atrapalharia à compreensão das questões do paciente.

O psicanalista Roland Chemama no Dicionário de Psicanálise Larousse explica que a contratransferência é um conjunto de reações afetivas conscientes ou inconscientes do analista para com seu paciente, com reconhecido e importante lugar no tratamento psicanalítico. A contratransferência constituiria aquilo que, do lado do psicanalista, poderia perturbar o tratamento.

Essa é uma noção importante e de crucial importância no manejo do método psicanalítico, pois Freud chegou a afirmar em carta a Ludwig Binswanger (segundo Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, no Dicionário de Psicanálise, essa correspondência data de 1913) que este é um dos problemas mais difíceis da técnica psicanalítica. Ou seja, tendo em vista o bem estar do paciente e o sucesso do tratamento psicoterápico, devemos estar extremamente atentos aquilo que no psicólogo ou psicanalista pode interferir/atrapalhar a condução do tratamento, ou seja, atentos à contratransferência.

É claro que um profissional do campo psi tem suas angústias, suas dúvidas, suas inseguranças, ideologias e posicionamentos em relação ao campo do político-social.  Inclusive isso é legitimado pelo código de Ética em seu terceiro princípio fundamental quando afirma que “o psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural.” Ou seja, esta prática clínica  não pode ficar alienada do contexto no qual a psicoterapia se insere, pelo contrário, o psicólogo deve estar antenado no seu entorno político e suas interpenetrações sócio-econômicas-culturais.

O grande desafio é a capacidade do profissional manter a isenção de sua posição política, de ser capaz de - a despeito de suas questões – se manter opaco e privilegiar a fala, o discurso, o desejo, o sofrimento do analisando.

Sabemos que para clinicar devemos estar sustentado no tripé de análise, supervisão e estudo. O profissional tem que passar pelo seu processo analítico e ser conhecedor de suas próprias questões para poder manejar um tratamento já conhecedor de seus “pontos cegos” como diz Freud. A supervisão de um profissional experiente também permite, complementarmente, que o psicanalista possa observar sentimentos contratransferenciais prejudiciais à neutralidade e opacidade necessárias à clínica.

Porém os psicólogos são humanos, independente de sua abordagem teórica, e isso não tem “cura”, digamos assim. Estarmos atentos e dedicados é fundamental para não descuidar da Ética e do juramento feito. Mas e quando o profissional se depara com algo que lhe é insuportável, como agir? Como conduzir o tema com a devida escuta isenta?

Digamos que o paciente na primeira entrevista conte que é pedófilo e descreva o que faz na sua doença com criancinhas. Ou que apareça um sujeito que defende e pratica tortura. Ou então que o sujeito conte como sua vida é construída sobre roubo e corrupção. Será que o psicólogo tem que trabalhar a sua contratransferência ou aceitar suas restrições morais e pessoais a determinado tipo de demanda clínica? Passemos então para exemplos mais próximos de nossa reflexão: e se o incômodo se relacionar à uma ideologia política?

Recentemente saiu nos noticiários que uma médica brasileira declinou atender em seu consultório pediátrico uma criança cujos pais possuem uma visão politico-partidária diferente da sua. Vale ressaltar que a médica não estava em exercício numa emergência ou plantão e que ela não incorreu nem em falta de Ética ou falta de profissionalismo ao recusar o atendimento nesse contexto. Ela declinou atender a criança e se reservou ao direito de recusar um paciente no seu consultório. Direito que lhe é facultado. Naturalmente que essa conduta vem gerando muita discussão, a favor ou contra.

Seguindo esse questionamento: pode/deve um psicólogo declinar atender um paciente cujo o posicionamento político lhe incomoda/desagrada/ofende logo nas primeiras entrevistas? Pode/deve esse profissional encaminhar , já em atendimento, esse caso para um outro colega?

Claro que vale analisar inicialmente o quanto do insuportável da diferença é uma questão mal resolvida para este profissional. Ou o quanto este profissional se depara com algo além ou aquém de seus limites ou disponibilidade. Mas, por outro lado, não seria muito mais ético e profissional o psicólogo reconhecer suas limitações na condução correta desse tratamento e fazer um encaminhamento para outro profissional?

Afinal, não é da responsabilidade do psicólogo admitir e lidar com suas restrições, limitações, ideologias e desejos de forma Ética e seguir assim o Art. 1º do Código profissional que preconiza como  deveres fundamentais “b) Assumir responsabilidades profissionais somente por atividades para as quais esteja capacitado pessoal, teórica e tecnicamente”?

Como explica o psicanalista Donald Winnicott, na contratransferência os aspectos “neuróticos” do analista minam as atitudes profissionais e perturbam o curso do processo analítico. Se o “pessoal” do analista passa a afetar o tratamento cabe a ele, em sua própria análise e supervisão, saber como se posicionar eticamente, tanto no pessoal como no profissional, com respeito e reconhecimento da alteridade, da diferença e da democracia. E de lidar com seus limites narcísicos...


quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Recomendações aos jovens psicólogos clínicos


Na semana de comemoração do dia do Psicólogo, pensei sobre os 25 anos formada – um quarto de século - e lembrei dos ganhos e aprendizados ao longo desses anos de clínica. Como professora, supervisora, orientadora tenho escutado algumas dúvidas e me inspirei em Freud quando escreveu o texto “Recomendações ao médicos que exercem a psicanálise” (1912) passando um pouco de sua experiência e resolvi falar brevemente sobre a minha própria experiência como psicóloga clinica.

Nas palavras de Freud "as regras técnicas que estou apresentando aqui alcancei-as por minha própria experiência, no decurso de muitos anos, após resultados pouco afortunados me haverem levado a abandonar outros métodos(...) Minha esperança é que minha observação delas poupe (...) muito esforço desnecessário e resguarde-os contra algumas inadvertências"Freud explica ainda que este é o seu modo de trabalhar, que tem a ver com sua personalidade, sua história, sua forma de se relacionar e diz ainda que alguém que tenha outra formação poderia adotar uma outra e própria visão da clínica.

É dessa maneira que proponho que o psicólogo clínico em início de profissão leia este artigo, como uma experiencia que eu tive e compartilho com vocês, com a qual podem ou não se identificar, mas que sirva de inspiração para cada um pensar sobre sua prática e percurso.

Para começar a falar de psicologia clínica relembro o famoso tripé que sustenta a clínica, sugerido para qualquer que seja a abordagem clinica: análise pessoal, supervisão e estudo.

É fundamental que o psicólogo tenha feito psicoterapia, para que se conheça e saiba como é passar por um processo terapêutico, que conheça suas luzes, sombras e domine seus pontos cegos de modo a ser capaz de conduzir um tratamento sem que projete o que é seu em seus pacientes.

Afinal, sabemos que durante a condução de um tratamento podemos eventualmente nos deparar com situações que nos remetam a vivências mais ou menos dolorosas que possamos ter passado, ou mesmo com situações semelhantes que se não forem devidamente conhecidas pelo psicoterapeuta podem trazer possíveis danos tanto no manejo do tratamento - afetando o paciente - quanto no próprio terapeuta, com os mesmos riscos.

Igualmente importante é que tenhamos em nossa caminhada inicial um profissional que admiremos e que tenhamos confiança para que sejamos supervisionados em nossos atendimentos iniciais, de modo a termos quem nos guie no manejo da relação terapêutica, no estabelecimento do contrato com o paciente, na condução do tratamento terapêutico. E que possa nos orientar no manejo da teoria e da técnica psicoterapêutica que for de nossa escolha.

Esse profissional é importante não somente nos primeiros estágios profissionais, bem como no início da clínica, possibilitando que o psicoterapeuta adquira a confiança e o conhecimento minimamente necessários para alçar um “vôo solo”, digamos assim. Um supervisor permite que possamos ver refletida a nossa prática de maneira crítica, construtiva e bem guiada nesses caminhos inéditos do começo da psicologia clínica.

Isso nos leva ao terceiro pilar que sustenta a clinica: o estudo. Estudar sempre e para sempre. Isso não acaba nunca, digo por experiência própria. Até porque quando gostamos do que fazemos queremos sempre aprender mais, não é? Fazendo as contas, descobri que estudo psicologia, psicanálise e afins há três décadas!!! Para a clínica isso é particularmente importante, visto que a cada leitura, a cada releitura, significamos e ressignificamos a nossa prática.

Inclusive, à medida em que vamos lendo e relendo, é a partir da prática que somos capazes de realmente alcançar a compreensão de determinados conceitos teóricos. Vou exemplificar com um conceito de minha abordagem teórica, a psicanálise. O conceito de transferência que pode ser perfeitamente entendido na teoria, ganha uma outra dimensão e amplitude quando passamos pelo processo transferencial com nosso analista, nosso supervisor e especialmente quando a conhecemos através de nossos pacientes.

Cumprido esse “básico”, de análise, supervisão e estudo, falemos agora em sobre como começar a clínica particular, sonho de grande parte dos estudantes de psicologia. Sempre digo que a clínica pode ser uma experiência solitária, daí a importância da troca em supervisão, grupos de estudo, especializações – estas últimas sempre recomendo e por vários motivos. Vou justificar.

A especialização te torna – parece óbvio – um especialista. Isso quer dizer que depois de terminar a graduação, já tendo em seu final de graduação decidido pela ênfase e etc., a gente sai da faculdade ainda com inseguranças e com a sensação que ainda está inexperiente. Em uma pós graduação -  realizada em uma boa instituição - , o psicólogo tem a chance de estudar uma área com exclusividade e ainda ter a prática supervisionada, bem como a experiência de desenvolver a escrita e o exercício de transmissão de saber através dos trabalhos de conclusão das matérias.

A confiança para clinicar vai assim se desenvolvendo. Sempre sustentada no tripé. Essa pode ser uma oportunidade de estar em contato com pessoas diversas da área de interesse, permitindo a formação de uma rede de conhecimentos que abre a chance de indicações profissionais, bem como de  novas possibilidades de estudo e trabalho no campo.

Além disso, ter no começo da clínica a experiência de uma instituição que sirva como “holding” e proteção é sempre boa indicação. Uma infraestrutura de atendimento com local, agendamento, a presença de profissionais no apoio é bastante motivador. A troca nos grupos de supervisão, os grupos transdisciplinares e etc. são uma experiência extremamente enriquecedora para um profissional em formação.

Quer atender no consultório particular, ter o seu próprio espaço? Avalie se vale a pena alugar um espaço com colegas com os quais dividirá as despesas, os horários, a decoração e administração do espaço – certifique-se que são colegas com os quais tenha diálogo e respeito.  Lembre-se que o dia a dia implica fazer acordos e concessões em diversos aspectos, desde horários até a cor da parede do consultório.

Mas também pondere se é mais vantajoso inicialmente sublocar um ou mais horários para ir investindo aos poucos na clínica, enquanto aumenta a demanda de horários, sem a responsabilidade de custos mais altos ou da administração do espaço. Dá trabalho quando o ar condicionado pifa ou quando um cano estoura no banheiro, coisinhas que demandam tempo na administração e que pode tornar mais prático sublocar.

E por falar em custos, cobre pelo seu trabalho. Esse é um assunto que pouco falamos na graduação. A maior parte dos estágios em psicologia clínica não são remunerados – o que acho muito estranho, aliás – somos de alguma maneira meio que acostumados a trabalhar de graça nos SPAs e nas instituições que estagiamos em clínica. Isso já favorece a dificuldade futura em receber dinheiro pelo seu trabalho...

O dinheiro também é tabu na nossa cultura, parece cobiça – ou até pecado, conforme nossa cultura cristã! – querer receber bem pelo nosso trabalho. Mas cobre, ainda que seja um valor abaixo do mercado ou da tabela sugerida pelo conselho de psicologia, valorize a sua profissão. Lembre que sua profissão é fruto de sua dedicação, seu estudo, de sua supervisão, de sua psicoterapia , do espaço que você paga para trabalhar. Você merece receber pelo seu trabalho, por respeito próprio e por direito de trabalhador. Mas lembre-se: o primeiro a se valorizar e acreditar na sua clinica tem que ser você.

Isso foi apenas um pouco do que aprendi até agora. Espero ainda aprender muito nas próximas décadas nesse apaixonante exercício da psicologia clínica...

segunda-feira, 31 de março de 2014

SOBRE O SILÊNCIO E O DESMENTIDO

Importante lembrar:  houve uma ditadura sim, chamada de regime de exceção, mas foi realmente uma ditadura violenta que durou muitos anos no Brasil. Em 64 começou um período de muita repressão e perseguição a todos aqueles que se opusessem ao regime e que perdurou longo tempo. 
Isso é fato inegável. Ditadura que fez inúmeras vítimas. Isso também é um fato inegável.  E ainda existem muitos silêncios traumáticos que ecoam em nossa vida social e política. E é sobre isso que precisamos falar. Sobre o silêncio e sobre o desmentido.
O que busca-se resgatar agora – o mais importante de tudo – é que seja revelado o que aconteceu com as centenas de desaparecidos e mortos durante esse período triste da história. É que a história seja revelada.
Longe dos maniqueísmos de bom ou mau, de direita ou de esquerda, temos que admitir que numa ditadura só existe uma verdade e que a imposição da verdade dos militares de direita nos anos de chumbo foram bastantes danosos para nossa cidadania e patriotismo. Digo militares de direita, pois existiam também os militares de esquerda. É disso que estou falando: as coisas eram e são bem mais complexas do que parece.
Da herança do silêncio e da opressão vemos a nossa dificuldade na conscientização politica, da discussão de direitos e deveres do estado e do cidadão, na ojeriza à politica e coisas do gênero. Anos de silêncio imposto sobre a liberdade de se pensar que deixaram sequelas graves nos brasileiros.
As atitudes foram extremas de ambos os lados, alguns argumentam, afinal os “terroristas”  de esquerda roubavam bancos para financiar suas lutas, sequestravam embaixadores para trocá-los pela vida dos presos políticos torturados e mortos nos porões da repressão,  assassinavam quem atravessava suas ações.  Ações radicais sem dúvida.
Mas o que dizer da prisão, morte e tortura daqueles que simplesmente discordavam do regime? Quantos relatos e histórias de pessoas que simplesmente por serem “de esquerda”, sem jamais terem pego numa arma, sem jamais terem se engajado em nenhum grupo de luta armada sofreram nas mãos desse regime, simplesmente por simpatizar com a idéia de um estado de direito com justiça e igualdade social?
Imagine um novelista que tem que mudar a história da novela das oito pois os censores disseram que um dos personagens estava insuflando rebeldia na trama? Essa foi Janete Clair. Imagine um  cantor com musicas censuradas por incitar a questionar? Escolha um da MPB nos anos 60... Imagine um professor universitário que tinha espião em suas turmas para evitar que qualquer nome de autor ou pensamento perigoso ao regime fosse mencionado? Escolha qualquer um na década de 60 e 70. E assim vai.
Esqueça por uns minutos os terroristas e lembre de pessoas comuns, como eu e você. Éramos nós, é de nós que estou falando. Pessoas como eu e você que do nada sumiam, morriam. Sem se saber direito onde, como ou porque.
Imagine não saber exatamente a confirmação do óbito de alguém de sua estima: pai, mãe, filho, filha, irmã, irmão... Imagine nunca saber de um corpo que confirme essa morte. A dor desse morto vivo sendo atualizada diariamente. Esse silêncio é traumático.
Conforme explica Aldir Blan, autor junto com Joao Bosco da música “o bêbado e o equilibrista” choram “marias e clarisses” choraram por décadas sem saber, viúvas Manoel Fiel e de Vladimir Herzog. Se a dor da perda de um amado já é imensa, torna-se incomensurável sem um corpo para velar, chorar, se despedir. É uma despedida que nunca se acaba, dor que se atualiza sem nunca ficar no passado.
Em 1979 veio a anistia “ampla, geral e irrestrita”, uma negociação para que todos os acusados de crimes políticos, exilados, presos e etc pudessem ter direito à liberdade de retornar à vida suprimida no Brasil – pelo exílio, pela cadeia, pela cassação dos direitos de cidadão. Isso quer dizer que de ambos os lados foi combinado que não haveriam sanções pelo passado.
Se foi o combinado, deve valer para ambos os lados, Mas não punir não significa silenciar, calar, omitir ou mentir.  Pois, como se diz, um povo que não conhece seu passado está condenado a repeti-lo.
A idealização de uma ditadura militar é um exemplo disso . Com a censura as informações às quais o brasileiro tinha acesso eram filtradas: não se noticiava violência, crime ou corrupção. O falseamento da realidade inventa uma nostalgia de uma realidade que não existiu, quase de um idílico – como todo passado nostálgico é – mundo de faz de conta.
Não repetir a ditadura. Sim, porque não vivemos uma ditadura: temos a liberdade de expressão e uma democracia em um estado de direito. Não importa o quão ruim é o nosso governo, ou se nossa presidente foi terrorista, não vivemos uma ditadura. Quem fala isso não sabe o que é uma ditadura.
Mas vivemos por décadas uma ditadura que foi devastadora, é devastadora para todos que foram direta e indiretamente atingidos por ela. Dizer que não existiu é mais danoso que tudo que se viveu. 
Conforme afirma o psicanalista Sandor Ferenczi em sua teoria do trauma, é o desmentido do ocorrido que se torna mais traumático que o fato em si, a negação da violência vivida pelo sujeito é que se torna desestruturante.
Por isso que temos que falar – muito e ainda-  sobre isso, nomear, significar, traduzir aquilo que ficou silenciado, não dito, sufocado, negado, para que possamos prosseguir. E superar . E não repetir. 
Conforme afirma Hannah Arendt, toda a dor pode ser suportada se sobre ela puder se contar uma história. E é sobre a nossa história que temos que falar.

terça-feira, 23 de julho de 2013

SOBRE A OBEDIÊNCIA


Um dos textos que mais me impressionou no começo de minha graduação foi o relato da experiência realizada por Stanley Milgran, em 1961. Milgran, cientista social e doutor em psicologia, conduziu em Yale uma pesquisa para verificar como pessoas comuns, sem antecedentes de violência poderiam cometer atos cruéis e atrozes.

A partir dos questionamentos sobre as pessoas “de bem” que haviam colaborado com os horrores do  holocausto, Milgran criou a suposição de que qualquer pessoa seria obediente a pressão de uma autoridade.

Para verificar sua hipótese, selecionou 40 voluntários homens para sua pesquisa que deveriam fazer o papel de um professor que arguiria um aluno. Explicando que a pesquisa era sobre punição no aprendizado, Milgran instruiu que a cada resposta errada o professor deveria dar um choque elétrico no aluno, em intensidades crescentes, incentivado por um cientista que coordenava esta pesquisa.  O aluno e o cientista eram contratados e  parte da pesquisa.

A sessão de tortura era uma encenação, mas o voluntário “professor” não sabia disso, o ator fingia levar choques cada vez mais potentes e implorava para o “professor” parar. Mas 65% desses participante chegaram a dar “choques” de  450 volts, média mantida em testes posteriores em outros países e com mulheres.

Nunca nenhum voluntário, em nenhuma das repetições da pesquisa, interrompeu o teste para ajudar o “aluno” e apenas uma pequena percentagem abandonou a pesquisa mas sem prestar auxilio ou denunciar os torturadores.

A pesquisa “os perigos da obediência” apresentou assim os riscos da submissão a uma autoridade, pois os sujeitos não conseguiam romper com a pressão de uma hierarquia, bem como revelou a não responsabilidade do sujeito pelo seus atos, uma vez que este alegava estar obedecendo a um terceiro, seguindo e submetido ao desejo deste. Afirma o autor que:

“O problema da obediência não é somente psicológico. A forma e a configuração da sociedade (...) Logicamente, toda sociedade tem de incutir hábitos de obediência em seus cidadãos já que não podemos ter uma sociedade sem alguma estrutura de autoridade. Aprendemos o que significa a obediência na família e na escola, mas principalmente quando passamos a integrar o mundo do trabalho. Trabalhando num escritório, numa fábrica ou no exército tem-se, necessariamente, de abandonar um grau de julgamento individual para que esses sistemas maiores possam operar com eficiência. Em tais situações de trabalho, a pessoa não se considera responsável pelas suas próprias ações, mas sim como um agente que executa os desejos de uma outra pessoa.

Lembrei desse texto impressionante a partir da recentes manifestações e dos fenômenos que se iniciaram no Brasil a partir do pleito pela suspensão do aumento da passagem de ônibus e o seu bordão “não é pelos 20 centavos” e toda a insatisfação de uma nação desgastada pela corrupção, pelos desserviços do estado na saúde, na educação e na sociedade como um todo.

Imediatamente lembrei desse texto e associei o perigo dessa obediência ao desempenho da PM no Rio de Janeiro ante às manifestações. É uma instituição militar e hierárquica, formada para o combate e repressão ao crime. É isso que eles aprendem em sua formação no curso do CFAP: a seguir ordens da autoridade, de seu superior sem questionar e aprendem também a reagir com violência. E são obedientes.

Lembro também de um filme também impressionante: “A morte e a donzela” (1994) , filme de Roman Polanski que se passa em um país qualquer da América Central saído da ditadura e versa sobre Pauline, mulher que se auto exclui da sociedade refugiando-se em sua isolada depois de sua experiência traumática como presa e torturada política.

Um dia seu marido auxilia um médico cujo pneu fura na estrada, que vai devolver estepe emprestado. É quando Pauline ouve a voz do visitante e reconhece a voz de seu maior torturador. A trama toda se desenvolve no embate entre Pauline e o médico, ela afirmando que ele é o seu algoz e ele negando veementemente sê-lo. Invertendo os papéis, Pauline torna-se a algoz daquele que julga seu seu torturador. É um filmaço, Sigourney Weaver dá um banho e o médico é Ben Kingsley, impecável. QUEM QUISER PRESERVAR O DESENROLAR DA TRAMA PARE DE LER OU PULE O PRÓXIMO PARÁGRAFO!

            Na apresentação do personagem do médico, sua doçura, educação, a vida que ele apresenta vemos a dúvida se instaurar no espectador: como aquela pessoa pode ser um torturador tão cruel? Voltamos ao texto de Milgran e aos perigos da obediência: a servidão ao outro autoridade... Sim, o médico era obediente...

            É complexo e paradoxal que uma pessoa de bem, decente, com princípios assuma a posição de um cruel algoz de outro ser humano. Se Stanley Milgran constata essa obediência psicológica, Sigmund Freud complementa a compreensão dessas violências ao afirmar a inerente existência de pulsões antissociais no individuo e a necessidade de contê-las em prol da sociedade.
   
           Em textos como Totem e tabu, Futuro de uma ilusão e Mal estar na civilização podemos encontrar as principais explicações de Freud sobre o sujeito e a cultura.  Resumidamente, Freud explica que a civilização se constrói sobre a renúncia pulsional, a renúncia dos desejos incestuosos, parricidas, homicidas, violentos e etc.

No mito de Totem e tabu Freud supõe uma mítica civilização ancestral parricida e luxuriosa que a partir da instituição do tabu do incesto e da exogamia organiza-se como sociedade construída sobre a lei simbólica. A renúncia desses desejos é o próprio Mal estar na civilização do qual sofre o sujeito, mas que entende que é necessário para sua proteção e sobrevivência na cultura. Mas estes textos, junto com o Psicologia das massas e análise do eu, trazem para o primeiro plano uma figura importantíssima: a figura do líder.

O líder é uma figura fundamental para entendermos a adesão cega, obediência e submissão a uma ideologia ou instituição. Cabe assim nos questionarmos sobre os lideres que promovem essa obediência em nosso momento social.

Amplio assim minha questão para outros lideres que não um governador, prefeito ou presidente, das autoridades como vemos nas situações que relatei da PM ou do torturador do filme, que não as situações somente de violência. Estamos em plena Jornada Mundial da Juventude, com o Papa Francisco participando do evento no Rio de Janeiro, com cerca de dois milhões de inscritos no evento. Manifestações religiosas, manifestações politicas, todas elas seguem o líder, pacificamente.

Como pensar as lideranças em nosso momento histórico, onde a adesão a qualquer movimento parece ser tão impulsiva e frágil, próprio das massas. Como pensar cada sujeito e sua sôfrega necessidade de adesão quando vemos o crescimento absurdo de religiões fundamentalistas, bem como o crescimento de xenofobias, homofobias e outros posicionamentos de grupos contrários a outro grupos em lideranças radicais?

Como nos tornamos tão desejosos de obediências que aderimos cegamente a um líder, seja um chefe de operações do Bope, a um grupo como o Anonymous, a uma religião, replicando mandamentos sem questionar, sem subjetivar?  

Você é obediente?


quarta-feira, 27 de março de 2013

SOBRE O ASSÉDIO OU YES, NÓS TEMOS BANANAS


 
Entro no elevador e me deparo com a extravagante e serelepe vizinha que inicializa um monólogo onde enaltece seus 72 anos, se compara à atriz Susana Vieira e sua animação. O monólogo se estende à garagem e quando ela está acabando de contar que a atriz idosa só “pega garotões” ela se volta para o garagista e diz:

- “Fulano vc quer ser meu garotão?”
O rapaz olha desconcertado para mim sem saber o que responder, sorri sem graça, abaixa a cabeça e nada fala. Um motorista ali sentado esperando a madame reproduz o mesmo olhar perplexo ante ao non sense da cena.

Na sequência ela me diz:
- "Você não está achando o clima entre os funcionários mais descontraído?"

Eu:
- "Não, estou achando o mesmo clima agradável de sempre, porque?"

 Aí me lembrei que ela acabou de ser eleita para o novo staff que vai gerenciar o condomínio do prédio onde moramos!

Então captei a mensagem: ela estava se autoelogiando e dando a entender como o clima de brincadeiras proporciona um melhor gerenciamento de funcionários, é isso mesmo?!

Eu já tinha achado a cena com o jovem mancebo desnecessária e constrangedora, mas quando entendi que quem tinha se dirigido ao garagista fazendo uma brincadeira de cunho sexual foi a subsíndica fiquei realmente preocupada. Não somente pela cena em si, que poderia passar por uma simples brincadeira. Mas pela crescente disseminação e naturalização de situações como essa de desrespeitoso assédio...

Ando escutando nos mais diversos âmbitos de nossa sociedade (acadêmicos, institucionais e etc) descrições semelhantes a essa, caracterizadas pelo assédio moral: assimetria de poder, abordagem constrangedora e desagradável por parte de pessoa que ocupa posição hierarquicamente superior, situação de opressão.

A falta de profissionalismo, a informalidade, a descontração, a falta de limitação dos papéis, a simpatia e sensualização de tudo nos mais diversos contextos, todo esse clima enfim provoca um profundo mal estar mas que fica de alguma maneira “diluído” em uma cultura como a nossa tão acolhedora e descontraída.

No ambiente profissional, acadêmico, social, as pessoas estão perdendo a noção do que é público e o que é privado, daquilo que é particular e do que é do social. Assedio moral, assédio sexual, como discernir o que são esses constrangimentos em uma cultura cada vez mais erotizada e voltada para a espetacularização de si mesmo e da intimidade?

Passa ser normal assediar sexualmente seu porteiro em uma cultura onde o sexo é banalizado e tornado uma mercadoria presente em todos os espaços de convívio.

Explico em exemplos cotidianos: vou em uma festa infantil em uma dessas casas especializadas para este público, com brinquedos e animadores para entreter os pequenos. Ou seja: uma casa especializada e voltada para o público infantil. E na trilha musical meus filhos - crianças! - escutam:

“Uísque àgua de côco pra mim tanto faz... eu fico louco de tesão e cada vez eu quero mais... corpo quente suado vem melar e vem lamber” (Naldo)
Na sequência:
“Cheguei na balada doidinho para biritar... faz o tchu tcha tcha (sic) ... é uma dança sensual...” (Gustavo Lima)
 
Lamber, melar, biritar: que explicações que se dá a uma criança que quer "entender" a letra com 6-8 anos? Como assim, casa infantil de festas? Porque em minha casa ainda posso controlar o que é visto-ouvido filtrando as diversas mídias. Mas estamos no mundo, como censurar o modus vivendi de uma cultura?
 
Nessa bagunça e confusão, pego um taxi à noite para ir à festa e sou obrigada a escutar o taxista contar "causos" sobre a mulher, a sogra e a igreja o qual insere os mais cabeludos palavrões que existem em nosso vocabulário na conversa com um cliente. Nada de mais, certo? Errado. Muito errado ao meu ver. Não sou obrigada a ouvir baixarias e palavrões quando estou contratando algum serviço. Mas cada vez mais cotidiano.
 
Valores que se perdem, como educação, respeito à intimidade e à privacidade, passam a imperar em nosso dia a dia. Não se trata de tabus ou de moralismos. Trata-se de regras mínimas de boa convivência e respeito ao próximo que vão caindo em desuso, tornando-se obsoletas e caretas.
Como afirma Paula Sibilia em O show do eu: a intimidade como espetáculo, assistimos agora a um declínio da interioridade. A autora, partindo de Richard Sennet em Corrosão  caráter quando este trabalha a "tirania da visibilidade", explica que os eixos que sustentam o sujeito contemporâneo passam a ser deslocados para um processo de globalização,  digitalização e espetacularização da vida.
 
Em que momento a conquista da liberdade sexual se tornou uma tirania da sexualidade é uma questão que venho me fazendo...

Sabemos como a sexualidade tornou-se um discurso e dispositivo de controle no social, como aponta Michel Foucault na História da sexualidade, desde o século XVIII. A psicanálise está entre estas disciplinas que vão normatizar e legitimar o "uso dos prazeres". Legitimar que somos seres sexuais, que somos todos perversos polimorfos, uma vez que nosso desejo e prazer infantis se satisfazem das mais diversas formas: pulsão oral, anal e etc.

Mas parece que nos tornamos cada vez mais perversos: exibcionistas, voyeuristas, impondo a sexualidade ao olhar e submissão do outro. No Brasil, com toda a nossa malemolência, exotismo e sensualidade para exportação, "yes, nós temos bananas", isto vai assumindo contornos cada vez mais estranhos e perigosos...